A tragetória de Luís Gama e a questão das cotas raciais

Percebemos que não só no Brasil, que é um país historicamente marcado pela exploração dos índios e de sua terra, larga escravidão e disseminado racismo e intolerância, mas no mundo todo, a questão das cotas raciais continua sendo amplamente discutida e aplicada, mesmo com a grande divisão da opinião pública quanto ao assunto.

Sem pretensão de denotar alguma parcialidade ideológica sobre o assunto, o autor deste texto não pretende expor apenas sua própria opinião, mas também analisar a necessidade da aplicação da política de cotas raciais não só para o ingresso em universidades públicas e privadas, mas principalmente para a composição de cargos públicos de alta hierarquia e de extrema responsabilidade na sociedade.

A justificativa para a implantação de um sistema de cotas em uma sociedade é a de que, certos grupos étnicos específicos, em razão de algum processo histórico depreciativo, teriam maior dificuldade de mobilidade social e oportunidades educacionais, oportunidades que surgem no mercado de trabalho, bem como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade. Dentre essas minorias dos grupos específicos, podemos citar os índios, os negros, os homossexuais, os portadores de necessidades especiais, as mulheres, dentre outras.

No Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a questão das cotas raciais passou a ser mais discutida, até que a partir de 2002 passou a figurar cada vez mais as páginas dos jornais brasileiros, devido à promoção de cotas para negros e etnias indígenas difundida na vigência do governo do ex-presidente Sr. Luiz Inácio Lula da Silva.

Em 1995, o presidente do Brasil na época, Dr. Fernando Henrique Cardoso, elaborou o GTI - Grupo de Trabalho Interdisciplinar, hoje já instinto, que promoveu algumas políticas públicas de inclusão social no país, ao passo que foi mesmo a partir de 2002 que houve maior fomento das questões sociais e também maior avanço. 

De acordo com a história, o Brasil está atrasado nesta questão, pois a política de cotas raciais surgiu na Índia, da década de 1930, em prol da superação das desigualdades socioeconômicas e da aspiração de uma maior igualdade social, face à gigantesca diversidade racial e cultural predominante na Índia, inclusive até os dias atuais. Do Brasil colonial há até pouco tempo atrás, os negros e índios que conseguiram marcar o seu nome na história o fizeram sob graves ameaças de morte e extremo preconceito social e cultural.

Um grande exemplo que figura em nossa história é o caso do famoso rábula, Dr. Luiz Gama. É interessante citarmos a trajetória da história de vida deste ilustre brasileiro para fazer um contraponto com a ideia moderna das cotas raciais.

Luís Gonzaga Pinto da Gama era filho da africana livre Luiza Mahin, uma das principais figuras da Revolta dos Malês, com um fidalgo branco de origem portuguesa, de uma rica família baiana, mas amante da boa vida e dos jogos de azar.

Depois que sua mãe foi exilada por motivos políticos, Luís, com apenas 10 anos, foi vendido como escravo pelo próprio pai, sendo levado para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo. Foi comprado pelo alferes Antonio Pereira Cardoso, proprietário de uma fazenda no município de Lorena. Em 1847, o alferes recebeu a visita do jovem estudante Antonio Rodrigues do Prado Júnior, que, afeiçoando-se a Luís, ensinou-o a ler e a escrever.

Em 1848, Luís Gama fugiu, pois sabia que sua situação era ilegal, já que era filho de mãe livre. Após seis anos de uma tumultuada carreira no exército, deu baixa no serviço militar em 1854. Dois anos depois voltou à Força Pública.

Luís Gama inaugurou a imprensa humorística paulistana ao fundar, em 1864, o jornal "Diabo Coxo". Poeta satírico, ocultou-se por vezes, sob o pseudônimo de “Afro”, “Getulino” e “Barrabás”. Sua principal obra foi "Primeiras trovas burlescas de Getulino", de 1859, onde se encontra a sátira "Quem sou eu?", também conhecida como “Bodarrada”.

Autodidata, Luís Gama tornou-se advogado e iniciou suas atividades contra a escravidão, conseguindo libertar mais de 500 escravos. É dele a frase: "Perante o Direito, é justificável o crime do escravo perpetrado na pessoa do Senhor". Conhecido como o "amigo de todos", tinha em casa uma caixa com moedas que dava aos negros em dificuldades que vinham procurá-lo.

Diante da história de Gama, podemos pensar: Como que um negro, filho de uma negra escrava que praticamente não esteve presente na trajetória de crescimento de seu filho, tendo como pai um homem que o vendeu como uma mercadoria e assim o mandou para bem longe, sendo que Gama tinha apenas 10 anos de idade, pôde conquistar um notável saber jurídico e um notável reconhecimento de seu trabalho por entre os cidadãos daquele tempo?

Naquela época não havia cotas. Muito pelo contrário: o preconceito era quase que alicerce principal da cultura brasileira geral praticada por todos, pois ainda vivíamos tempos de plena escravidão dos negros, e quanto àqueles que eram alforriados, definitivamente não podemos dizer que eram “livres”, por conta do preconceito vigente. Estavam fadados a serem “inferiores”, diante dos brancos burgueses e aristocratas dos salões coloniais e das cidades da época, e principalmente pelos senhores donos de fazendas e escravocratas.

Gama teve o seu mérito. Analisando a trajetória de Gama sob a luz da ideia das cotas raciais, poderíamos dizer que elas não são necessárias. Isso é um erro. É claro que não podemos indagar essa profana afirmação.

Gama foi um menino que vivenciou momentos que nem todos os escravos da época vivenciaram: ele tinha uma vida livre, com uma família, e que de repente foi tirado de sua vida de garoto mulato e colocado para ser escravo, rejeitado por ser um escravo baiano (os escravos originários da Bahia eram bastante rejeitados nos leilões, pois tinham fama de arredios e fujões), sendo obrigado a fazer trabalhos diversos dentro da fazenda de seu senhor. Imagine a humilhação que Gama não sofreu, e como isso o pôde ter afetado. Ele sabia que não era um escravo comum.

Quando Gama aprendeu a ler, levou isso como seu ideal de vida, porque tinha condições de fugir e de se ver em outra realidade. Gama conectou os pontos.

Mesmo com extremo talento, e já conhecido rábula da província, Gama ingressa na Universidade de Direito do Largo de São Francisco, mas não consegue concluir o curso devido ao extremo preconceito, que partia até mesmo dos professores. Em tempos atuais o preconceito diminuiu, mas ainda paira uma ideia geral e subliminar de indiferença, que apenas cessaremos com uma boa política social de afirmação das minorias oprimidas.

Imagine se em nossas universidades e instituições públicas existissem mais pessoas com uma experiência de vida como a de Gama, ou como a de qualquer ser humano pertencente a uma minoria oprimida, como os negros, os homossexuais, os pobres e muitos outros.

Essa experiência compartilhada e em contraste com a vida de diversas outras pessoas geraria mais aprendizado. Criaríamos ambientes de diversidade e respeito, com pleno entendimento das mazelas e alegrias de cada um, aprendendo com os outros e trocando experiências sempre.

O texto proposto para análise nos mostra que mesmo nos países desenvolvidos a política de cotas se faz fortemente presente. Os Estados Unidos da América são um bom exemplo de luta contra o preconceito nesse sentido: saíram de um passado de profunda segregação racial para um presente com aplicação de cotas nas universidades e nas instituições públicas. Isso não significa que por lá o racismo acabou, pois isso ainda não aconteceu e está longe de acontecer, mas a aplicação de algumas políticas de inclusão social representou um avanço significativo para a sociedade americana, que assim como a brasileira, carrega um passado de extremo racismo e exploração dos negros e índios (alguns estudiosos dizem que o racismo e a exploração dos povos nativos e dos negros na América do Norte ainda foi maior do que na América do Sul).

Dentre essas políticas sociais de inclusão temos as Ações Afirmativas, que são medidas especiais aplicadas a grupos discriminados e vitimados pela exclusão social, ocorrida no passado ou no presente. O objetivo das ações afirmativas é o de eliminar as desigualdades e segregações, de forma que não se mantenham grupos elitizados e grupos marginalizados na sociedade, ou seja, busca-se uma composição diversificada onde não haja o predomínio de raças, etnias, religiões, gênero, etc..

As Ações Afirmativas são feitas por meio de políticas que propiciem uma maior participação destes grupos discriminados na educação, na saúde, no emprego, na aquisição de bens materiais, em redes de proteção social e de reconhecimento cultural.

No Brasil, desde a implantação do primeiro programa social de Ações Afirmativas, em 1995, muitas delas já foram implementadas e continuam sendo. Podemos citar, por exemplo: o aumento da participação dos grupos discriminados em determinadas áreas de emprego ou no acesso a educação por meio de cotas, concessão de bolsas de estudo, prioridade em empréstimos e contratos públicos, distribuição de terras e moradias, medidas de proteção diferenciada para grupos ameaçados, etc..

Não podemos dizer que as Ações Afirmativas são políticas antidiscriminatórias. As ações afirmativas são preventivas e reparadoras, no sentido de favorecer indivíduos que historicamente são discriminados. As políticas antidiscriminatórias são apenas formas de reprimir os discriminadores e de conscientizar aqueles que possam vir a discriminar.

Algumas Ações Afirmativas para os afrodescendentes em âmbito federal brasileiro: a Lei 10.639/03 e a Lei 11.645/08. Além delas, podemos citar a Lei de Cotas no Ensino Superior, a Portaria Normativa Nº 18, de 11 de Outubro de 2012 o decreto Nº 7.824, de 11 de Outubro de 2012 e o Estatuto da Igualdade Racial.

A meritocracia não pode ser fadada a apenas uma forma de vitória, um tipo de conquista. Devemos tratar os desiguais na forma e maneira de suas desigualdades, e garantir, por meio de políticas públicas, este tratamento. Assim, teremos um ambiente de pluralidade cultural, compreensão e respeito, sempre longe do preconceito.

Carta de Luís Gama a seu filho:
Meu filho,
Dize a tua mãe que a ela cabe o rigoroso dever de conservar-se honesta e honrada; que não se atemorize da extrema pobreza que lego-lhe, porque a miséria é o mais brilhante apanágio da virtude.Tu evitas a amizade e as relações dos grandes homens; porque eles são como o oceano que aproxima-se das costas para corroer os penedos.Sê republicano, como o foi o Homem-Cristo. Faze-te artista; crê, porém, que o estudo é o melhor entretenimento, e o livro o melhor amigo.Faze-te apóstolo do ensino, desde já. Combate com ardor o trono, a indigência e a ignorância. Trabalha por ti e com esforço inquebrantável para que este país em que nascemos, sem rei e sem escravos, se chame Estados Unidos do Brasil.Sê cristão e filósofo; crê unicamente na autoridade da razão, e não te alies jamais a seita alguma religiosa. Deus revela-se tão somente na razão do homem, não existe em Igreja alguma do mundo.Há dois livros cuja leitura recomendo-te: a Bíblia Sagrada e a Vida de Jesus por Ernesto Renan.Trabalha e sê perseverante.Lembra-te que escrevi estas linhas em momento supremo, sob a ameaça de assassinato. Tem compaixão de teus inimigos, como eu compadeço-me da sorte dos meus.Teu pai, Luiz Gama. (trechos da Carta de Luiz Gama ao filho Benedito Graccho, 1870).

Bibliografia:
http://en.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Gama
http://educacao.uol.com.br/biografias/luis-gama.jhtm
http://clickeaprenda.uol.com.br/portal/mostrarConteudo.php?idPagina=20495
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=820:luiz-gama&catid=47:letra-l&Itemid=1
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Gama
http://vejasp.abril.com.br/materia/veja-sao-paulo-25-anos-luis-gama
http://etnicoracial.mec.gov.br/acoes-afirmativas-cotas-prouni

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